EM TORNO DO CONTO FELICIDADE CLANDESTINA: A LEITURA COMO NECESSIDADE, PRAZER E DOR.

 



EM TORNO DO CONTO FELICIDADE CLANDESTINA: A LEITURA COMO NECESSIDADE, PRAZER E DOR.

Rute da Silva Santos (UFT)

s_rute@hotmail.com

 

Luiz Roberto Peel Furtado de Oliveira

luizpeel@uft.edu.br

 

Fico às vezes reduzida ao essencial, quer dizer, só meu coração bate.

                                                                                                                  Clarice Lispector

 

A expressão adequada de um objeto no sujeito – um absurdo contraditório: porque entre duas esferas absolutamente diferentes como o sujeito e o objeto não existe causalidade nem exatidão, mas uma relação estética, isto é, uma transposição insinuante, uma tradução balbuciante em uma língua totalmente estranha.

Friedrich Nietzsche

 

RESUMO: O presente artigo apresenta uma análise do conto “Felicidade clandestina”, de Clarice Lispector, por meio de uma conceituação filosófica de literatura, de leitura, de texto e de leitor. Nossa análise adota as concepções teóricas de Deleuze e Guattari (1992), na perspectiva da geofilosofia; além de Nietzsche (2014) e Fernández (1998), que tratam respectivamente da vontade da potência e da leitura literária. O objetivo dessa análise crítica é compreender os modos tão singulares da leitora que é personagem do conto, para revelar os aspectos metafóricos do território da leitura literária, ampliando esse universo para os processos de desterritorialização e reterritorialização. A metodologia adotada é um mergulho poético no mundo conflitante da personagem que se submete a terríveis humilhações em busca do livro desejado. Apresentaremos os traços de semelhança entre a narradora-personagem da história e a autora, e colocaremos em evidência a dicotomia entre o leitor e o não leitor.

 

PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Leitura; Leitor; Territorialização.

 

 

A leitura se torna muitas vezes uma necessidade intrínseca e individual, como são a fome e a sede; por isso, nós precisamos que ela seja saciada, sua ausência causa um desconforto progressivo que se transforma em dor, desespero, angústia e morte. A literatura é isso, o alimento do leitor. Compreendemos como leitor aquele que lê, não por obrigação, mas por uma necessidade vital e de prazer, não há um padrão de leitura a ser seguido, cada leitor cria o seu, levando em conta contextos, assuntos, gêneros e tipologias textuais de seu agrado, que contemplem seus interesses particulares tanto conscientes quanto inconscientes.

O conto “Felicidade clandestina”, de Clarice Lispector, expõe a relação entre o texto e o leitor no limite mais profundo de dependência. A menina leitora retratada na história vive situações conflitantes em busca da leitura. Ela própria narra os episódios torturantes a que se sujeitava na esperança da recompensa sagrada, o livro: “na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia”. Nota-se aqui o início dessa tortura ainda nem percebida, a vilã, dotada de puro sadismo, descobriu naquela menina quixotesca uma presa fácil para sua maldade, pois “possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria”. Nesse contexto, ler estava fora das posses financeiras da garota que adorava livros, e, a partir daí, ela passa a ser subjugada.

Entender o papel da Literatura na vida do leitor é algo complexo e metafórico, ou simbólico, que perpassa por desejos, sentimentos, expectativas, ambições e frustações. Após a leitura desse conto, a autora permite que façamos essas observações até então não vistas, envolvendo-nos na narrativa, provocando em nós os mesmos sentimentos e as mesmas apreensões daquela menina.

Clarice Lispector é sempre surpreendente na criação de suas histórias intimistas e não é insensato dizer que, em muitas de suas ficções, há um pouco do seu próprio “eu”. No conto em questão, podemos fazer uma analogia entre ela e a narradora, uma pela necessidade de escrever; a outra, de ler. Eis o que ela mesma nos revela numa bela e emocionante confissão:

 

Há três coisas para as quais nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever e nasci para criar meus filhos. [...] A palavra é o meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a minha infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por que, foi esta a que segui. Talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E, no entanto, cada vez que vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever. (LISPECTOR, apud NUNES, 1986, p. 3.)

 

            O desejo de ler é o sentimento mais aguçado da narradora do conto, na mesma dimensão da vocação da autora em escrever - para ambas aí estava o sentido de viver. Quando aquela menina gorda e sardenta descobre que sua colega, esbelta e bonitinha, tem esse sentimento incontrolável pela leitura, instaura contra ela uma discreta vingança.  Por que tamanho ódio por quem amava ler? As duas garotas ocupavam dois paradigmas opostos: a leitora e a não leitora.

            Mas afinal, o que é o leitor? A Literatura em suas inúmeras ficções procura resposta para essa indagação e para outras subjacentes. Quem é aquele que lê? Onde está lendo? Para quê? Em que condições? Qual é sua história? Para Fernández (1998), “para poder definir o leitor é preciso saber encontrá-lo”. Esse é um dos papéis da Literatura. No conto “Felicidade clandestina”, o leitor é uma adolescente, humilde, cheia de encantos e apaixonada por livros, que se descobriu inteiramente entregue a essa paixão, quando soube que a sua fiel inimiga possuía o livro de seus sonhos. Leiamos:

 

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. (LISPECTOR, 1998, p. 6)

 

É mais que natural uma adolescente nutrir-se de paixões avassaladoras; entretanto, personificar um livro nunca havia sido comum nesse universo jovem. Eis o perfil desse leitor, ficcionado tão bem por Clarice. O livro é para a garota um jovem galã a quem ela precisava decifrar e devorar. À vilã caberia a tarefa de fazer essa apresentação entre os dois, quando prometera o empréstimo:

 

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. (LISPECTOR 1998, p.6)

 

A partir dessa promessa, a jovem apaixonada penetra num mundo de fantasias, desejando cada vez mais o amado, dia após dia; e a ânsia de tê-lo nos braços renascia a cada expectativa negativada pelo “volte amanhã”.  E por quanto tempo permaneceram as andanças da leitora àquela casa? “Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso” (LISPECTOR, 1998, p.7). O desejo daquela moça paradoxalmente se torna dor, ela agora passa a ser um animalzinho ingênuo na rede do caçador.

Estabelece-se, assim, um conflito, que será determinante para a continuidade da narrativa. E a base desse conflito é uma forma de ajustamento que almeja uma conformação de forças, uma verdadeira transposição ou transvaloração entre as partes envolvidas no embate.

Nietzsche discute bastante esse jogo de forças que se estabelece na manifestação da vida; em Assim falou Zaratustra, o filósofo afirmou que a própria vida é vontade de potência – toda manifestação de vida é, realmente, uma guerra ou uma relação de forças, o que fica claro no conto: ela já não enxergava mais nada ao seu redor, seus dias resumiam-se na incessante e alucinante espera, seu corpo já dava sinais do mal prazeroso que ela sentia, embriagada pelo ópio da perversa inimiga da leitura:

 

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. (LISPECTOR, 1998, p.7)

 

A leitora em questão é uma personalidade pouco comum, dentre tantos leitores do universo da literatura, é uma espécie de masoquista, ela se alegra com o sofrimento, passa ser vítima, por vontade própria, porque acredita na felicidade vindoura. Ela se desterritorializa de seu mundinho anterior e se territorializa em outro espaço, perdida no fluir de suas sensações internas e externas - isso traduz a noção deleuziana da literatura, quando percebemos a criação de um novo jeito de catalisar a potência da leitura, que leva ao limite da expressão. Nossa leitora é movida por afetos e por perceptos, em busca do devir (DELEUZE, 1997, p. 14).

Finalmente, o amado cai em seus braços, quando a mãe da menina sádica descobre a ação malévola da filha e a faz entregar o livro; releiamos as passagens finais do conto:

 

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

 

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

 

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante. (LISPECTOR, 1998, p.7,8)

 

A menina se acostumara tanto com o amor clandestino em que vivia, que mesmo agora, empoderada pelo livro desejado, ela se reterritorializa no universo psicológico anterior, para reviver novamente o sabor do não ter e depois deleitar-se com o ter.  A ideia da filosofia de Deleuze e Guattari, na perspectiva do território, leva-nos a entender, de certa forma, esse comportamento:

 

A desterritorialização de um tal plano não exclui uma reterritorialização, mas a afirma como a criação de uma nova terra por vir. Resta que a desterritorialização absoluta só pode ser pensada segundo certas relações, por determinar, com as desterritorializações relativas, não somente cósmicas, mas geográficas, históricas e psicossociais. Há sempre uma maneira pela qual a desterritorialização absoluta, sobre o plano de imanência, toma o lugar de uma desterritorialização relativa num campo dado. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 116)

 

No contexto dessa leitora de modos tão singulares, os limites das funções da literatura se extrapolam e nos remetem a novos territórios literários. A leitura tem essa capacidade de ampliar os horizontes em ângulos e possibilidades distintas e cada leitor passa ser único no espaço literário. Clarice Lispector nos abriu uma janela para enxergar esse leitor perdido nesta paisagem geográfica da leitura. Ler, nesse sentido, é construir rizomas para fixar territórios e permitir agenciamentos entre o eu leitor e o texto.

Esse jogo, brinquedo solitário de espera e de conquista, elaborado num solilóquio feliz, estabelece-se como pedaço de recordação do sofrimento anterior, quando da ausência do livro tão desejado. Assim, brincando de dentro e de fora, a leitora sente prazeres inconfessáveis, frutos de devaneios e de flanares de felicidades clandestinas.

            A literatura permite as experiências do fora, e do dentro, que, nas palavras de Blanchot, instauram o sentir o que não se sabe: “uma experiência que, ilusória ou não, aparece como meio de descoberta e de um esforço, não para expressar o que sabemos, mas para sentir o que não sabemos” (1997, p. 81). A palavra, dessa forma, instaura o mundo do fora, contrapondo-se à falência do “lógos” clássico. Essa experiência do fora é, para Deleuze, a criação do campo de imanência, um campo de forças – o campo da vontade da potência, de Nietzsche, o campo estético por excelência.

            Lispector cria diferenças e repetições; cria, de fato, novos mundos. E, para Deleuze, a criação da vida se dá apenas pela diferenciação do virtual, já que diferenciar é criar:

 

No virtual, a diferença e a repetição fundam o movimento da atualização, da diferenciação como criação, substituindo, assim, a identidade e a semelhança do possível, que só inspiram um pseudomovimento, o falso movimento da realização como limitação abstrata. (1988, p. 342)

 

            O virtual alcança, assim, a multiplicidade; afastando-se da semelhança e da realização de algo possível. Kafka, Proust e Lispector criam mundos de virtualidade – planos de força, cheios de potência vital – criam, destarte, vida e felicidades clandestinas.

            A literatura cria, então, simulacros do fora por meio da possibilidade de que novos perceptos e novas sensações sejam experimentados – cria experiências para sentir o que não sabemos, já que, oriundas do fora, permitem que vivenciemos virtualidades, planos novos de imanência. E, a partir daí, a vivência da leitura literária permite a coparticipação de novos mundos.

 

Referências bibliográficas

BLANCHOT, M. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

 

DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

 

DELEUZE, G. Crítica e clínica. Tradução Peter Pal Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.

 

FERNÁNDEZ, Macedonio. Tudo e Nada: pequena antologia dos papéis de um recémchegado. Trad. Sueli Barros Cassal. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1998.

 

LEVY, T. S. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

 

LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

 

MOSÉ, V. Nietzsche e a grande política da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

 

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2014.

 

NUNES, B. O mundo imaginário de Clarice Lispector. In: O dorso do tigre. São Paulo, Perspectiva, 1986.

 

SANTOS, William Moreira. O conceito de geofilosofia em Deleuze e Guattari, p. 155-169. Revista Pandora Brasil – Número 34, Setembro de 2011 – ISSN 2175-3318

 

Comentários

  1. Que lindo texto! Da vontade de ler um livro novo! Perfeita a análise!

    ResponderExcluir

  2. O texto nos provoca a fazer uma analogia ao "sistema opressor" que nega a educação aos sujeitos e a vilã torna uma ótima representação para esse "sistema" que oprime os sujeitos, nega a liberdade de alcançar novos horizontes. Pois o conhecimento traz nova visão de mundo, torna um sujeito crítico e convicto as necessidades de mudanças, logo o "sistema" nega e oprime. Lembra aqui: A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, onde o autor mostra que o opressor tem prazer em dominar, humilhar, comprimir e impedir a educação a classe desprovida. A literatura provoca mudanças aos sujeitos. Da vontade de ler o livro todo mesmo @ Laís Dantas . Parabéns! @Rute 😘💯

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O QUE DIZER DAS LIVES EM TEMPO DE PANDEMIA

FUMAÇA NOS PULMÕES DOS OUTROS É REFRESCO